Wish You Were Here

Era a linha curva e imperfeita seguida de outra e mais outra que lhe desenhavam a cara, mais esculpidas que desenhadas pelo tempo. Havia outras linhas imperfeitas e agrestes que completavam este mapa, a lembrar dores e angústias passadas, mas eram derrotadas no conjunto pelas primeiras, senhoras duma harmonia vitoriosa no meio dos escombros da vida.

Em tudo o mais, esta pequena mulher avançada nos anos, parecia vulgar: o cabelo penteado apenas para enganar o abandono, as roupas de cor indiferente e o avental a rodear a anca larga. O andar rápido e laborioso e as mãos ainda maternas mas mecanizadas apenas completavam a figura.

O que era extraordinário e contagiava as pessoas é que aquele peão quase anónimo exibia inconscientemente o rosto enrugado como um general cheio de galardões conquistados por mérito. E quando aquela mulher oferecia o olhar a sorrir, parecia que um maestro invisível ordenava uma orquestra de linhas em plena sinfonia, apenas para nosso puro prazer.


Era portanto normal que o rapaz engravatado, acabado de entrar no café ainda vazio, vendo a D. Palmira de costas e a moer o café (era assim que tinha apontado o nome), lhe parecesse apenas uma funcionária com idade a mais para trabalhar num café de estação de serviço.

Sentou-se discretamente ao balcão, incumbido pela sede central da missão de averiguar o fenómeno. A saber: de todas as regiões por onde se espalhavam mais de dois mil cafés exactamente idênticos, esta estação de serviço era campeã de vendas de café por larga vantagem.

Ora vejamos, pensou, a máquina e o lote de café iguais, as mesmas chávenas brancas, o preço idêntico e, ao contrário de outros cafés, nem tinha o pau canelado como opção. 

Era certo que ainda era muito cedo, aquele cedo de céu forte azul petróleo e de luzes laranja ainda acesas nas ruas. O frio normal das noites que antecedem a primavera também não ajudaria, e a bem dizer, não estávamos bem numa grande metrópole mas numa cidade industrial, das tais condenadas a ter um passado em que já foram orgulhosas e prósperas. Mas o café ainda mudo de gente tornava o mistério maior.


Enquanto vestia o fato-macaco, o homem negro e grande dos seus cinquenta, exercitava o tendão dorido da mão, na esperança de dias melhores. A casa dormia ainda embalada no sono da sua mulher. Há vários anos que tinha decidido fazer do aterro municipal o seu campo de batalhas e aventuras. Nos primeiros dias em que tinha sido contratado, parecia uma barata tonta. Os sacos de plástico voavam por todos os lados e a vara com ponta, muito dificilmente espetaria algum. Um saco cheio de meia em meia hora, tinham-lhe dito. Depois foi-se tornando no seu próprio destino, como dizia, uma espécie de Jackie Chan: observando a vítima a esvoaçar em movimentos contraditórios, atacava impiedosamente e a presa era capturada no primeiro golpe. Tornou-se o rei do seu domínio, único peão num território de camiões e de detritos. No primeiro verão de contrato, os odores a lembrar leite azedo ainda lutaram nas suas narinas, mas rapidamente reprogramou-se para a imunidade.

Mas o que o fazia puxar um sorriso do tamanho do dia era aquele fumegar do café. Ficava a umas centenas de metros na estrada e era servido por uma senhora rija: Palmira, Zulmira, baralhava-se sempre. Tinha como certo que um dia havia de descobrir o segredo daquele café, qualquer coisa que lhe adicionava em segredo. Quando lhe perguntava, ela simplesmente ria e mudava a conversa- O senhor Abdul é um tonto!

O que ele nem reparava era no breve tocar da sua mão, como que afagando a dor do tendão- Ponha-se bom. E virava as costas ocupada com os inúmeros pedidos. De café e de mãe.

Quando os dias frios pediam-lhe que levasse mais uma dose do elixir quente, bebia-o no meio do campo de batalha, de vara na mão. Quando estivesse cheio, haveriam de construir um jardim por cima, palavra de presidente da câmara. E ele virava arquitecto de paisagem, desenhando veredas e palmeiras, flores perfumadas e um pequeno lago celeste. Era o seu jardim, sacos esvoaçantes transformados em bandos de pássaros.


O patético da sua solidão é que Jeff, o marido de longa data estava agora apaixonado por miss Bridges, no mesmo lar de idosos, na ala das causas perdidas, com mister Alzheimer a correr-lhe nas veias, obliterado de qualquer amor passado, rumo ao mundo dos patetas alegres, como ela lhe chamava. E o que lhe doía mais era a alegria infantil que lhe teimava no rosto e tornava a sua solidão ainda mais insuportável.

A nora é que tinha cortado o filho e netos para a outra ponta do país, com uns reencontros natalícios fugazes e, sim, ela sabia, sempre dolorosos. E sempre que matinalmente se borrifava de colónia passada, era de repelente que no fundo se armava. Também as suas rugas faciais se armavam, mas em forma de vê, de sargento preparado para a frente de batalha. E dirigia o passo decidido rumo ao café, de pelo eriçado, a resmungar por uma carícia em forma de café, da sua agora única amiga Palmira. Por um momento, enquanto sorvesse o café esboçaria um esgar de sorriso imperceptível, a Palmira a piscar-lhe o olho. E nesse momento viria-lhe o cheiro da relva cortada da casa onde tinha sido feliz. Zangar-se com a dor era uma forma de lutar, de nunca atirar a toalha ao ringue.


Cada vez que dona Palmira o via aproximar-se pelo grande vidro do café, via-o ainda e sempre de mãos dadas com os pais fardados, com a mochila a caminho da sala de aula e os pais em direcção à sirene de entrada na fábrica. Hoje, Hugo homem descia do fim da noite e através dos céus gelados até ao aeroporto da cidade natal. Presidente numa torre de vidro multinacional na capital, insistia em visitas periódicas à pequena sucursal da cidade, essa sim, sede e conselho de administração das suas emoções mais profundas e antigas; o espaço onde repousam mais do que as cinzas, o amor nunca perdido dos pais, dos amigos de escola e dessa segunda mãe, fazedora do mágico café, de nome Mãe Palmira. E tal como um marinheiro cujo destino é retornar ao mar, também Hugo cumpria repetidamente o seu voltar de saudade.


E foi assim que numa sincronia perfeita de dominós, o moinho de café parou, o jovem de gravata olhou e a porta abriu-se ao bocejo da cidade. Um e depois outro, os clientes assomaram ao balcão, como que combinados numa procissão. Dona Palmira, virou-se então por detrás do balcão, olhou o rapaz e bailou as palavras- Então, vai um cafezinho?

Fica desse dia e para registo, o relatório que chegou à sede confirmando as altas vendas de café, a incompreensão do fenómeno e a recomendação de que a senhora idosa e simpática dos cafés merecia assim que fosse possível a justa reforma.

Fica também o registo de posteriores anos e pela tranquila morte de Palmira, de que Hugo achava de que ou havia Céu ou tinha sido absolutamente criado naquele instante, coisa disparatada para a mulher de Jeff mas que finalmente chorou e se perdoou. Já Abdul garantiu a reencarnação merecida como suprema estrela de Bollywood, dançando em templos exóticos de países dourados.

Dizem que quando as estrelas fenecem também criam imperfeitas curvas no céu. Talvez.

Comentários

  1. Muito fixe o teu blog João. E gosto desta pequena história (se assim lhe pudesse chamar).
    Abraço.

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  2. Quero, um dia, saber escrever como tu :)

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  3. Abraços, daqui do Brasil. Muito bom seu escrito. Quero convidá-lo a ler os meus em www.marielza-tiscate.blogspot.com e a ouvir músicas em www.myspace.com/marimaritiscate

    Tudo de bom procê!

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