Doze Segundos Para A Madrugada
12.
Uma
sombra de pássaro penetrou a noite por entre as bestas de betão adormecidas. A
cidade ressonava.
Pássaro
abrupto e anónimo fugindo da madrugada.
Noite
azul.
11.
O
braço saiu da penumbra esticando-se ao infinito.
O
objecto de sedução sorria baixinho ao longe.
Num
golpe, o corpo contorceu-se e alcançou a meta.
De
olho esbugalhado e fio de baba pronto, abri as gengivas ao sabor do objecto de
silicone. A minha bela chupeta.
Uma
reviravolta nos olhos, pálpebra pendente e de volta ao sono. Não estava ainda
preparado para o dia que ameaçava.
Continuava
a sonhar a minha certeza infinita de que não só o meu quarto mas também todo o
planeta era de peluche multicor.
10.
Ainda
a noite azul soprando o seu último bafo frio. Na mesma cidade. Sonho colectivo:
Uma
velhota, o canalizador, o engenheiro de barragens, um centro de terceira idade
completo, um piquete de ambulância, meninas e velhinhas, executivos aturdidos,
todos levantaram os corpos lentos e sonolentos, embrulhados em cascóis e
casacos, espreitando a montanha pela janela dos quartos.
Das
bestas de betão e por entre as serpentinas de alcatrão, a massa de gente
dirigiu-se para a encosta. O gigante natural abria-se em convite com os seus
paus, calhaus, rios e bosques aos corpos moles e fracos dos homens e mulheres
urbanizados. Os carros, torneiras, botões, luzes e janelas variadas ficariam
nesse dia, e para o infinito, congelados na cidade moribunda e defunta.
Sonho
colectivo.
9.
Noutro
edifício da madrugada, a voz metida a café disparou no micro radiofónico:
“O
Sr. Presidente da câmara tomou a atitude insólita de
mandar
plantar, em redor de todas as fábricas e indústrias do concelho, laranjeiras. O
efeito colheu de surpresa operários e conselhos de administração das referidas
fábricas. Alguns idosos passaram a sentar-se à soleira das portas, logo de
manhã, para as contemplar. Alguns chegaram mesmo a ir
cheirar
e regar as referidas. Um grupo de jovens, entre eles Diogo, Alexandre e Fernando,
atreveram-se a furtar algumas mas a mordida foi a laranja amarga. A avó do
Diogo resolveu fazer compota.”
8.
Da
pele como outra pele, o tecido, a armadura, parede, telhado, cobertura,
clausura.
Da
mão a alavanca, espada, pistola, comando, projéctil.
Do
pé a roda, o avião, nuvem de éter, telecomunicação.
Do
olho a lente, o microscópio, a imagem de ti próprio.
Do
teu suor e odor, o odor do animal, o perfume, a essência, o torpor do escape e
da chaminé.
Do
ouvido, o vento e o trovão, o bater da asa e a nasa. Voo supersónico, zumbido
estéreo, ouvido, orelha, apenas e muda.
Do
sabor, a língua lambendo o sangue da tua pele, quebrando o sal, sorvendo os
químicos e células venosas que te queimam vivo, cancro sem fim.
E
da árvore, prévia ao homem, apenas a planta catalogada, estável, envasada por
detrás do vidro duplo, térmico e silencioso, da tua janela fechada virada para
a madrugada.
7.
Os
queixais abriram bafejando pestilência no ar nocturno. O estômago metálico
roncou e girou à espera de novo repasto.
Caiu
um momento de silêncio antes de devorar mais uma presa. Vinha em peças
separadas:
Fraldas
das três da manhã, rascunhos duma carta de amor, vestígios duma manga verde e
desaproveitada,
Cascas
sortidas de vegetais coloridos, uma lâmpada expirada, um teclado triste e
liquidado, um cadáver de peixe caído dum aquário.
O
cadastro de todos os habitantes do bairro foi ingerido e deglutido por sua
majestade.
O
camião fez então menção de partir, libertou gases verticais e arrancou.
Presos
por pegas, os dois uniformes humanos dobraram os pescoços às estrelas,
ignorando
o
lastro molhado e fétido do monstro motorizado.
Todos
foram tragados pela noite.
6.
No
silêncio do prédio dormido, apenas o murmúrio do elevador.
Ninho
metálico e temporário do jovem casal em cio.
Fim
da noite.
Coxa
com coxa, fluido com fluido, branco e negro.
Músculo duro contra pele macia. Eu contra ti, dentro de ti.
Sugando
o teu arfar e a tua emoção.
Caídos
ao pé do amor:
Agendas
preenchidas, perfumes, créditos e débitos, fantasias com líderes de banda,
modelos e contramodelos, bocejos e remelas, cinquenta horas semanais de stress,
carapaças e máscaras. O teu medo e o meu.
Á
quinta volta para cima e para baixo no electrónico elevador, finalmente a porta
da casa, luz azul, pássaros histéricos acordando a madrugada, os nossos corpos
em câmara lenta voando na cama e no silêncio do nosso prédio de Amor.
5.
Era
uma vez um cérebro que habitava um corpo.
O
corpo mandava-lhe cartas de dor, sensações de frio e calor e até amor.
O
cérebro, por sua vez, mandava comunicados com ordens expeditas, mexe a perna
para ali ou aqui, direita, esquerda, dorme, sorri, franze o sobrolho, desce a
pálpebra e volta a abrir.
Como
é que isto acontecia, ninguém sabia.
Mas
o cérebro tornou-se curioso por cima de curioso. Percorreu os livros de
Alexandria, as fórmulas matemáticas de árabes e indianos, entendeu como Buda
flutuava ou como Confúcio agia.
Emitiu
leis, pregou morais e navegou na web.
Foi
crescendo e crescendo em convulsões de massa cinzenta inextricável até já não
caber no corpo. Tornou-se senhor de si e passou a viver só, pairando sobre a
vida.
O
corpo, de espinha curvada pelos livros e computadores, pálido e de músculos
tristes, foi visto pela última vez abandonado nos fundos dum jardim gelado de
inverno.
Mas
quando o cérebro percebeu que já não recebia as cartas de dor e alegria, os
arrepios de pele, os suores salgados e o bater imprevisível do coração,
sentiu-se só e vagueou por vales e cidades à sua procura.
Dizem
que se juntou, invisível, ao corpo gelado numa gelada madrugada do último dia
da sua vida.
4.
Entro
na câmara escura, dão-me uma máscara, outras máscaras observam-me. As máscaras
já são espelhos donde não posso fugir da minha figura mil vezes repetida e
desfigurada.
Gostava
de estar só num deserto silencioso, o vento a lamber docemente as minhas orelhas.
Não consigo.
Volto
à câmara escura, parece que vejo as máscaras e espelhos velados.
As
narinas abrem-se, os meus lábios tremem, um fio de suor frio invade a minha
têmpora. Tenho vontade de urinar. Esperam que dê um passo. Direita? Esquerda?
Frente? Trás?
Tenho
medo. Ranjo os dentes. Tenho raiva.
Quando
lanço a minha pedra da Intifada, lanço um jorro do meu próprio sangue que não
volta e abafo o medo. A bala de borracha que me alcança também vem ensopada em
suor de terror.
Quando
ergo a minha lança, quando injecto veneno na minha veia, quando viro as costas,
quando ato a minha mulher à cama e lhe lanço ácido num acto cobarde e
miserável, quando sinto o vírus negro que me vai comendo o corpo, quando lanço
mísseis, quando violo uma criança, perpetuando a minha própria violação, quando
fecho os olhos ao abismo sem fundo, o que tenho é medo, muito medo.
Quando
é que posso sair do escuro?
3.
Dentro
de mim corre a luz que já não é e as estrelas à muito extintas, explodem
andrómedas, nebulosas, constelações e civilizações.
Espaço
e tempo são apenas os meus estados de alma, que velhos e árvores
comunicam em silêncio.
Dentro
de mim está um homem a quem estanco o choro, um jovem a quem bebo a raiva,
pedras mudas, o parto duma mulher que termina, um só gesto indolor de amor.
Dentro
de mim, estão a dor e o calor. Sou e não sou. Deus, palhaço, cálculo
matemático, profeta imolado. Corpo sem dor ou dor sem corpo?
Disseram
a pedra e o planeta, disseram as mãos sujas e o sangue quente: eu sou Deus.
2.
A
mão larga e dura abocanhou a viga de madeira, envolvendo-a momentaneamente com
o calor do corpo negro.
O
prédio em construção figurava ainda como uma massa indivisível no fim da noite.
O
corpo enorme tecido em múltiplos e brutais músculos moveu-se silencioso,
erguendo a viga ao seu destino, selando o último contacto entre a terra e o
betão.
Por
um momento, a massa do homem parecia querer e poder sustentar toda a estrutura.
Aguentaria
paredes, giraria crianças nuas no ar, suspenderia uma mulher num acto de sexo e
amor, enlaçaria uns ombros cansados no último fôlego do combate.
Não
sei se o que brilhou por uns instantes na pele negra e suada do corpo imenso
foi um primeiro tiro de sol nascente ou apenas uma ferida de sangue lento e
quente, escorrendo para a madrugada.
1.
Todo
o meu corpo se violentou em contorções apontando para a superfície.
Todo
o mar e sal do oceano ficaram mais e mais para trás, o espelho da superfície
ferindo o meu olhar.
Num
último golo de oxigénio, o meu corpo explodiu na superfície, entre vagas
anteriores e posteriores, admiráveis.
No
suspenso improvável do vazio, sorrindo à espuma, as partículas sustentaram-me
no ar e no tempo, esperando a resposta, entre o Ying e o Yang, a sensibilidade
e o bom senso, entre o voo irrespirável e a prisão macia do oceano profundo.
O
primeiro calor da manhã bateu no meu dorso, iluminando as escamas prateadas do
meu ser supremo, suspenso do tempo e senhor da vontade.
2002, João Tovar
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